Como as chamuças chegaram até Portugal
Em qualquer café de Lisboa, encontramos uma apetitosa variedade de salgados, frequentemente expostos no balcão, tentando quem apenas entrou para beber qualquer coisa e que, de repente, pode dar por si a petiscar. Entre opções que ninguém hesitaria em considerar típicas daqui, incluindo os pastéis de bacalhau, os rissóis de camarão, as empadas de galinha e os croquetes de carne, as chamuças costumam destacar-se.
Imagem de capa cortesia de Food Services Lab
Para muitos, a chamuça pode parecer um velho conhecido dos menus indianos, mas a sua história estende-se muito para além do seu tempo no subcontinente indiano. Mas, como é que este petisco incrivelmente popular encontrou o seu lugar no sortido de salgados portugueses? As viagens globais da chamuça contam-nos sobre as histórias entrelaçadas de culturas e, consequentemente, de gastronomias, através dos continentes. Vamos rastrear o caminho da chamuça desde as suas origens antigas até ao seu lugar atual no panorama gastronómico de Portugal, explorando como cada cultura foi juntando novas camadas à sua identidade.
A origem das samosas ou chamuças
Imagem cortesia de Big Chef Cooking no Youtube
A chamuça, como hoje a conhecemos, começou a sua jornada longe das ruas da Índia e certamente ainda mais distante dos estabelecimentos de Lisboa. A sua primeira encarnação foi como samsa (mostrada na imagem acima), nomeada pela sua forma piramidal, nos antigos impérios da Ásia Central, há mais de mil anos atrás. Estas versões iniciais eram simples, recheadas com carnes e especiarias, depois assadas nas cinzas quentes das fogueiras do deserto. Naquela época, comerciantes e viajantes ao longo da Rota da Seda já desfrutavam deste petisco, que era assado e não frito.
À medida que esses comerciantes se deslocavam de região para região, o samsa viajava com eles, tendo assim penetrado nas tradições culinárias do Médio Oriente. Quando o Império Persa adotou o petisco, chamando-o de sambuseh (mostrado abaixo), este tinha já evoluído para algo notavelmente próximo das chamuças que o mundo inteiro conhece hoje. À medida que os chefs persas começaram a experimentar com vários recheios, a chamuça começou a adquirir novas formas. Foi tão bem aceite que se tornou num elemento regular em ocasiões festivas e banquetes reais, e foi assim que solidificou o seu estatuto como parte da cultura gastronómica da região.
Imagem cortesia de Saffron & Herbs
Da Pérsia, a trajetória de viagem da chamuça mudou drasticamente em direção ao subcontinente indiano. Foi através das influentes rotas comerciais e das invasões dos guerreiros da Ásia Central que a chamuça entrou nas cozinhas indianas. Historicamente falando, a culinária indiana sempre foi muito aberta a influências externas e também bastante adaptável, então não foi surpresa que a chamuça fosse não apenas adotada, mas eventualmente também adaptada.
As chamuças na Índia
À medida que a chamuça se tornou parte do repertório culinário da Índia, continuou a passar por transformações que refletiam a imensa variedade, gastronómica e cultural, do subcontinente indiano em si. Além disso, este é um petisco tão versátil, facilmente adaptável aos gostos locais e aos ingredientes disponíveis, que a variedade de chamuças a ser produzida era naturalmente alargada.
Imagem cortesia de The Tiffin Box
Por toda a vasta extensão da Índia, diferentes regiões fizeram da chamuça algo próprio. No norte, era recheada com batatas e ervilhas temperadas – como as da imagem acima – frequentemente conhecidas como chamuças Punjabi, e geralmente refletindo as preferências vegetarianas devido às regras alimentares hindus. A massa exterior, originalmente assada na Pérsia, foi aqui adaptada à preferência indiana por comidas fritas, tornando a chamuça irresistivelmente crocante. Estas são o mesmo tipo de chamuças encontradas em países vizinhos da Índia, alguns dos quais foram, de facto, uma nação unida em tempos, nomeadamente no Paquistão ou no Bangladesh, onde as chamuças são conhecidas como shingara, assim como no Nepal, onde os fritos são chamados de singadas.
Imagem cortesia de The Logical Indian
Em contraste, a evolução da chamuça tomou um rumo diferente noutras regiões da Índia, especialmente em Goa e áreas circundantes. Sob o domínio português desde o início do século XVI até 1961, Goa tornou-se num lugar de mistura das tradições culinárias do Oriente e do Ocidente. A influência portuguesa foi profunda, introduzindo novas técnicas de cozinha, ingredientes e até pratos inteiros ao paladar indiano. Em Goa, a chamuça passou a contar com carnes como as de porco e vaca, temperadas com especiarias trazidas pelos portugueses de outras partes do seu império. E foi assim que as chamuças de carne picada foram popularizadas, embora o recheio de batatas também só tenha sido possível graças aos portugueses, já que as batatas foram trazidas para a Ásia por comerciantes portugueses, que já tinham explorado a América do Sul, onde os tubérculos são originários.
Esta versão Goesa da chamuça, que com o tempo também se tornou mais fina e mais plana em comparação com a chamuça do norte da Índia, com um formato triangular algo mais arredondado, tornou-se um reflexo da síntese cultural que definia a cozinha Goesa, que era uma mistura de indiana e portuguesa, com o Cristianismo e os seus valores em relação à comida como parte dos seus alicerces.
Influência Portuguesa e a chegada da chamuças a Moçambique
Os portugueses levaram a chamuça goesa com eles à medida que expandiam as suas rotas comerciais para os seus territórios africanos, particularmente Moçambique. Moçambique, com uma localização estratégica ao longo da costa oriental da África, serviu como um hub central no império português para o comércio marítimo. Aqui, a chamuça encontrou um novo lar e transformou-se mais uma vez. Influenciada pelos abundantes mariscos e pelas especiarias locais, a chamuça moçambicana começou a incluir recheios como camarão, peixe e frango, juntamente com as mais tradicionais carnes de vaca e porco.
Imagem cortesia de Cantinho do Aziz no Facebook
A adaptação da chamuça em Moçambique destacou a sua capacidade de transcender fronteiras culturais e geográficas, tornando-se um petisco procurado não apenas entre os colonos portugueses, mas também dentro das comunidades locais. Além disso, a considerável diáspora indiana (nomeadamente do estado de Gujarat) em Moçambique, que aumentou particularmente na segunda metade do século XIX, contribuiu ainda mais para a popularização de todos os tipos de chamuças em Moçambique. E, acreditamos nós, foi assim que a chamuça começou a tornar-se um petisco global, mais do que um petisco indiano – quando, na verdade, nunca chegou a ser totalmente indiana apesar de ser assim vistas muita vezes, se realmente contarmos com a samsa do Uzbequistão e outros países da Ásia central como a fiel precursora das chamuças de hoje.
As chamuças em Portugal
Eventualmente, a chamuça fez o seu caminho de Moçambique para Portugal continental, onde foi rapidamente adoptada, tornando-se uma favorita entre o sortido de salgados servidos em cafés e padarias.
Imagem cortesia de locojm no TripAdvisor
A história da integração da chamuça na culinária portuguesa está intrinsecamente ligada aos eventos históricos de meados do século XX. Após a Revolução dos Cravos de 1974, Portugal passou por uma profunda transformação, levando à descolonização de seus territórios africanos, incluindo Moçambique. Com a independência de Moçambique, um número significativo de moçambicanos migrou para Portugal. A maioria desses imigrantes estabeleceu-se em Lisboa e arredores, trazendo consigo as suas tradições culinárias.
Nos anos seguintes à independência, Lisboa viu o surgimento de restaurantes que atendiam principalmente à comunidade moçambicana. Estes estabelecimentos serviam como pontos de encontro para expatriados moçambicanos, oferecendo-lhes o familiar sabor de casa no estrangeiro. A comida servida nestes estabelecimentos era autenticamente moçambicana, não adaptada para se adequar aos gostos portugueses continentais, mas sim preparada para satisfazer os paladares nostálgicos daqueles que tinham deixado a sua terra natal. A gastronomia moçambicana é, por si só, uma fascinante mistura de influências africanas, portuguesas e indianas. A influência indiana na culinária moçambicana, especialmente em receitas como as chamuças, pode ser rastreada até à comunidade gujarati. Comerciantes gujarati e seus descendentes viveram em Moçambique durante séculos, e trouxeram consigo o seu património culinário, que se misturou com ingredientes locais e influências portuguesas. O resultado é uma culinária de fusão única que caracteriza grande parte do que agora reconhecemos como sendo a gastronomia moçambicana.
Muitos desses moçambicanos descendentes de gujaratis mudaram-se para Portugal após a revolução, e a sua presença é fortemente sentida até hoje na paisagem gastronómica de Lisboa. Estas comunidades continuaram a preparar chamuças ao seu estilo tradicional, usando especiarias e técnicas transmitidas através das gerações. Ao fazer isso, também ajudaram a popularizar a chamuça entre a população portuguesa de forma mais ampla.
Inicialmente, a chamuça e outros pratos moçambicanos eram relativamente desconhecidos para o português médio. No entanto, à medida que a população de Lisboa se diversificava e os portugueses se tornavam mais curiosos e abertos a explorar diferentes sabores, a chamuça começou a fazer o seu caminho desses estabelecimentos moçambicanos de nicho para os cafés e padarias portugueses convencionais. A crescente aceitação das chamuças e outros pratos de Moçambique é particularmente evidente em Lisboa, onde a população de imigrantes das antigas colónias e seus descendentes é mais concentrada. Hoje em dia, não é incomum encontrar chamuças servidas como parte de um maior sortido de salgados em cafés por toda Lisboa, frequentemente desfrutadas junto com um típico café português.
Em Portugal contemporâneo, a chamuça tornou-se um clássico em várias formas, refletindo a sua jornada através de diferentes culturas e regiões:
– Chamuças ao estilo Goês: refletindo a influência da história colonial portuguesa em Goa, estas chamuças são tipicamente recheadas com carne temperada, muitas vezes de vaca ou porco, ou até mesmo mariscos (como a chamuça de camarão mostrada aqui abaixo), refletindo o património cristão da região. As especiarias usadas nas chamuças goesas são tipicamente mais robustas e podem incluir ingredientes como vinagre e malaguetas locais.
Imagem cortesia de Jesus é Goês
– Chamuças ao estilo moçambicano: estas chamuças podem apresentar recheios como camarão bem condimentado, frango, ou uma mistura de carnes e especiarias locais. A chamuça moçambicana é um testemunho da mistura de influências culinárias indianas, africanas e portuguesas, com recheios que são mais diversos e frequentemente mais picantes do que os encontrados na culinária portuguesa tradicional.
– Chamuças ao estilo português: com o tempo, os cozinheiros portugueses foram criando as suas próprias versões de chamuças, às vezes recheadas com ingredientes mais prevalentes na cozinha portuguesa, como o chouriço ou o bacalhau mas, sem dúvida, a variedade mais comum é a de frango, temperado com pó de caril algo genérico, dando à carne desfiada uma aparência amarelada característica. Estas chamuças costumam ser bem menos picantes do que as suas contrapartidas goesas ou moçambicanas, adaptando-se assim ao paladar mais contido dos portugueses.
A presença das chamuças em Portugal, particularmente em Lisboa, é um reflexo da integração cultural mais ampla que ocorreu no país ao longo das últimas décadas. O facto de as chamuças, outrora uma iguaria estrangeira, serem agora um dado adquirido em cafés e pastelarias portuguesas, é o reflexo da maneira como a sociedade portuguesa abraçou as tradições culinárias de suas antigas colónias. Gostaríamos de acreditar que, numa perspectiva menos óbvia, esta integração representa a mistura de culturas, a aceitação da diversidade e a forma como a comida pode servir como uma ponte entre diferentes comunidades. Em Portugal, a chamuça acaba por ser um símbolo da história colonial do país, da sua identidade pós-colonial e da influência contínua da sua população multicultural.
Variações das chamuças pelo mundo
A jornada da chamuça da Ásia Central aos cafés de Portugal é apenas um capítulo na sua história global. Hoje, a chamuça é um petisco onipresente em muitas partes do mundo.
Em outras partes da Ásia, a chamuça foi adaptada ao gosto local, resultando no bajiyaa recheado com peixe nas Maldivas, ou na mais pequena samuza do Myanmar, habitualmente servida sobre caril de grão-de-bico ou até mesmo mergulhado num prato comummente conhecido como sopa de chamuça birmanesa ou caril de chamuça birmanês – aqui fotografado. Na Indonésia, as chamuças podem até ter noodles como parte do seu recheio, quase lembrando a mistura de vegetais e noodles finos frequentemente usada como recheio de um rolinho de primavera chinês.
Imagem cortesia de NDTV Food
Mudando para o Médio Oriente, particularmente nos países árabes, a chamuça assume a forma de sambousek, frequentemente em forma de crescente e recheada com carne de cordeiro ou de vaca picada, cebolas e especiarias como cominhos e canela.
A estas alturas, já não há dúvida de que as chamuças são uma parte integral da cultura gastronómica na África Oriental, onde os pastéis geralmente recheados com carne moída são conhecidos como sambusa, sambuus ou sambuuse.
Na África Austral, para além de Moçambique, países como o Quênia, a Tanzânia e a África do Sul também têm as suas próprias versões da chamuça, conhecidas como samoosa, incorporando ingredientes locais como milho, lentilhas e especiarias regionais.
No Reino Unido, por exemplo, a chamuça tornou-se popular entre as comunidades sul-asiáticas que migraram para lá em grande número durante o século XX. Na Grã-Bretanha, as chamuças geralmente apresentam um recheio mais picante e são frequentemente servidas com chutneys e molhos, assim como acontece na Índia, para agradar à preferência local por sabores pronunciados.
Imagem cortesia de Time Out London
A significância cultural da chamuça vai além do seu sabor e ingredientes, e serve como um lembrete dos séculos de explorações, comércio e trocas culturais que moldaram o mundo moderno.
Onde comer as melhores chamuças em Lisboa
Convidamo-lo a participar numa tradição que atravessa continentes e séculos, sem sair do centro de Lisboa. Permita-nos propor um pequeno roteiro das chamuças de Lisboa – visitando estes locais e provando o seu estilo particular de chamuça, terá a oportunidade de saborear um pouco da história deste petisco, que é, de certa forma, a história complexa mas deliciosa das culturas a misturar-se e, em última análise, da globalização:
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- Experimente autênticas chamuças ao estilo norte-indiano em Lisboa no
The Coffee Shop
📍Centro Comercial Mouraria, Largo Martim Moniz, Piso -1, Loja 202, 1100-364 Lisboa
- Prove como Goa adaptou as chamuças para incluir recheios não vegetarianos como carne ou mariscos em
Tentações de Goa
📍Rua de São Pedro Mártir 23, 1100-555 Lisboa
www.facebook.com/TentacoesDeGoa
- Mergulhe as suas chamuças moçambicanas em molho piri-piri no
Cantinho do Aziz
📍Rua de São Lourenço 5, 1100-530 Lisboa
- Saboreie chamuças mais finas, ao estilo português, em qualquer café ou pastelaria portuguesa, ou experimente algumas das mais conceituadas na cidade na Antiga Confeitaria de Belém – a histórica pastelaria que catapultou os pastéis de nata para a fama mundial tem chamuças surpreendentemente boas, mostrando claramente como elas fazem parte da cultura dos café aqui em Portugal, e nós, os locais, já nem sequer questionamos isso!
Pastéis de Belém
📍Rua de Belém 84 92, 1300-085 Lisboa
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